Sábado, vinte
horas, rua oito do bairro Boa Esperança. Uma fogueira cumpria o papel místico do evento
e de iluminar a rua substituindo as lâmpadas dos postes queimadas há muito
tempo.
Muitos dos
presentes, só ouviram falar sobre o que era um sarau. Mas estavam empolgados com
o encontro ao pé da fogueira. Idosos, jovens, pais e filhos todos ansiosos para
ver o resultado da oficina de literatura feita com a juventude do bairro pela
professora Madá.
A professora,
poetisa por natureza, trabalhou a semana toda por aquele momento. Ajudou cada
participante da oficina perceber seus talentos na escrita, e a enxergar a
educação como um instrumento de libertação, e a poesia como arma de denúncia do
abandono e opressão no qual a comunidade é submetida.
Sem aviso, um
menino negro com uma roupa já bem desgastada, faz um batuque no tambor iniciado
lentamente e foi acelerando. Todos ali ficaram esperando o que estava por vir.
Naturalmente havia se formado um circulo, de pessoas em pé, sentadas em
cadeiras trazidas de casa, ou sentadas sobre a sandália.
No ápice da
batucada, uma mulher de máscara, entra dançando no ritmo imposto pelo menino.
Ela gritava:
Liberdade! Liberdade!
Mãe Liberdade somos teus filhos,
Filhos roubados de ti após o parto
Sem teu colo não posso mais ficar
Oh, Liberdade minha mãe
Ou me toma em teus braços
Ou não posso mais viver...
Subitamente o
menino parou de tocar o tambor, e a mulher desfaleceu-se no chão.
Olhos arregalados,
boca aberta, e lágrimas escorriam no rosto de alguns. Aquele momento despertou
sentimentos adormecidos no peito dos adultos, e fazia florescer novos anseios naqueles
jovens.
Mais pessoas
chegavam ao pé da fogueira, todos atentos ao que estava pra acontecer. Uma
menininha com toda perspicácia do ímpeto infantil falou: ‘É professora Madá!
Pai ajuda ela!’. O homem sorriu e votou olhar a mulher no chão.
Da caixa amplificada
começa a tocar um fundo musical tão calmo quanto uma brisa matinal. E eis que
surge uma menina dentro de um vestido azul marinho cantarolando com uma voz tão
meiga, tornando-se um afago aos ouvidos dos presentes.
Com um olhar tão
triste e choroso, a menina olha para a mulher deitada ao chão e grita com
uma voz aguda:
- Filha minha!
Cada fala causava
as mais diversas reações no público:
- Como pode uma
criança ser mãe dessa mulher, acho que eles erraram- disse uma senhora com a
netinha no colo.
A cena seguia.
Agora sentada no chão e com a cabeça da mulher no colo a menina falava:
Minha filha
O tempo passa tão rápido pra vocês
Eu vim,
Você me chamou,
Eu vim
Não suportaste minha ausência
Como tantos outros por ai.
Pena filha minha
Que de todos os meus filhos
Somente alguns sentem minha falta.
Esse mundo cão
Tira de vocês a essência de existir.
Sente meu cheiro,
Meu peito pulsar,
Sinta minha vida em ti.
Ao fim das palavras
da menina, a mulher se recompôs ficando sentada ali mesmo, recebeu um beijo na
testa. E viu a garota se afastar, saindo de cena.
- Ela ficou sozinha
de novo!- Alguém exclamou.
Nessa hora,
retomou-se o batuque. A mulher levanta-se lentamente e desfralda outros versos:
Nessa terra que me deito
Ninguém mais vai me pisar
Dessa terra que eu planto
Ninguém vai me arrancar.
Levanto-me pelo que acredito
E acredito em você irmão
Em você irmã
Dirigindo-se aos
expectadores, pegou na mão de uma senhora que estava de pé observando, e de um
rapaz, levou para o meio da cena e continuou declamando falando intimamente
para os dois:
Acredito na Senhora que me trouxe
aqui
Em ti, que continuará na luta futura.
De joelhos ninguém pode ficar
A mãe Liberdade não envelhece,
E temos que forjar o momento dela nos
encontrar.
O nosso caminho
É nossa responsabilidade.
Naquele instante a
mulher tirou a máscara, era Madá, com dissera antes a garotinha. Madá gritou:
- Repitam comigo: O
nosso caminho é nossa responsabilidade!
Agora não era mais
ensaiado, mais tudo bem feito num compasso sem igual todos repetiram a frase
três vezes.
Era o fim da cena
inicial do sarau. Muita poesia e historias ainda estava por vir, tudo feito
pelas mãos da juventude do bairro.
Como aquilo mexeu
com a comunidade! Todos ficaram extasiados. Madá não se aguentava de tanta
felicidade. Ela acreditava na arte como um instrumento de emancipação popular.
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